Neste momento em que fazemos memória e celebramos o mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus – antecedido por um tempo quaresmal conturbado e marcado pelo fundamentalismo religioso –, faz-se necessária a reafirmação do nosso compromisso batismal com a construção do Reino de Deus, enquanto tarefa comum e imprescindível de todas e todos os cristãos.
O catolicismo popular é um fenômeno complexo e contraditório, pois serviu aos interesses das classes dominantes, mas também como expressão de esperança e resistência das classes populares (Aquino Junior, 2023). É uma marca histórica de contínua perseverança e resistência das comunidades pobres brasileiras no seguimento de Jesus. Em regiões longínquas e empobrecidas, foram sobretudo as mulheres quem mantiveram acesa a chama da fé e garantiram a existência das comunidades católicas. Como afirma Altemeyer Júnior: “Nosso catolicismo plural e em mutação constante nasceu relativamente livre e autônomo, com ‘muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre’” (2018, p. 21). A cultura do encontro e do diálogo se materializa em pequenas comunidades, onde acontecem diversas celebrações próprias do nosso devocionário brasileiro.
Dentre as tantas celebrações, destacamos o Sermão das 7 Palavras de Jesus na Cruz, expressão da piedade popular celebrada em muitos lugares do Brasil. O sermão recorda o que foi dito por Jesus quando pregado na arma torturadora da cruz. Fazemos memória do inocente e pobre Jesus que passou fazendo o bem (cf. Oração Eucarística VI – D), durante sua vida e por todo o percorrer do caminho do Calvário, sendo executado violentamente por anunciar que um outro mundo era possível.
Desde já, afirmamos que as reflexões que faremos a seguir estão relacionadas às experiências cotidianas e conversas de roda feitas com pessoas profundamente comprometidas com a proposta de bem-viver, ou seja, sujeitos que acompanham, refletem e propõem junto às juventudes, um desejo por vida saudável, respeitosa e solidária para todas e todos. As sete palavras de Jesus na cruz podem nos ajudar a meditar sobre as juventudes que são sacrificadas hoje:
1. “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)
O Jesus que passa fazendo o bem, mesmo diante das injúrias, escárnios e maltratos, clama ao Pai para que perdoe aqueles que o não compreendem. Situação semelhante vivenciam as juventudes, geração após geração – e ainda mais nos tempos atuais. Utilizando-se de pseudoconceitos (geração X, Y, Z), adultos afirmam que os jovens não são comprometidos, que são dispersos, que “não querem nada com nada”. Uma juventude incompreendida e injuriada, por quem detém o poder. Não são jovens que decidem sobre economia, sociedade e política. Os poderes estão nas mãos dos adultos que dominam, atribuindo aos jovens e aos pobres os problemas que eles mesmos criam. Mas isso não ocorre sem resistência: as juventudes, especialmente as periféricas, protagonizam lutas cotidianas e históricas. Jovens que, segundo os adultos, “não sabem o que fazem”, estão acordando cedo todos os dias e pegando ônibus lotados e pagando tarifas caras para trabalhar, estudar, sobreviver. São pressionados a decidir sobre seu futuro enquanto são assombrados por um amanhã incerto e perigoso. Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que decidem, o que falam e o que fazem com a vida das juventudes.
2. “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)
O Jesus que passa fazendo o bem, até mesmo no momento da cruz, escuta e atende o clamor de esperança do “bandido”, prometendo-lhe descanso, alegria e segurança. Adolescentes e jovens das favelas, ocupações e bairros pobres são os que mais vivenciam situações de desproteção em nossa sociedade. Por sua cor e seu endereço, são frequentemente alvos de abordagens policiais violentas. Jovens que buscam o primeiro emprego precisam, muitas vezes, emprestar o endereço de amigos para incluir no currículo, pois o seu bairro é considerado perigoso – “e de lá não pode vir coisa boa” (cf. Jo 1,46). Jovens mulheres, diariamente, não encontram um lugar seguro.
3. “Mulher, eis o teu filho. Eis a tua mãe” (Jo 19, 26-27)
O Jesus que passa fazendo o bem, do alto da cruz olha para Maria, sua mãe – mulher, viúva –, e se compadece da sua situação de total desamparo. Do outro lado, aos pés da cruz, Maria vê seu filho sendo assassinado pelos poderes da época. Essa cena permanece comum: jovens mortos pelo Estado, e mães chorando e lutando por justiça. É sabido que a juventude é a que mais mata e mais morre no Brasil. Numa sociedade contemporânea profundamente desigual e violenta, os jovens pobres, pretos e periféricos são alvo fácil. Quando ocorrem homicídios causados por uma polícia despreparada e predatória, são as mães que, jogadas no chão, abraçam seus filhos executados. As mães lutam por justiça, e assim fazem não somente porque são seus filhos, mas porque oprimidas, são capazes de se solidarizar com os oprimidos.
4. “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15, 34)
O Jesus humano se confronta com sua união divina com o Pai. Ver-se numa situação como aquela e perceber-se sozinho, mutilado, com dores inexplicáveis. Assim também estão muitos adolescentes e jovens que vivem em sofrimento mental: corpos esticados, feridos, esgotados, sentindo toda essa dor sozinhos, sem respostas às suas angústias. Quando perguntados, relatam que suas principais preocupações e medos estão relacionadas à pressão para decidirem sobre seu futuro, atormentados com os fracassos desse futuro incerto ou de serem abandonados. Situação de abandono vivem também jovens LGBTQIA+: expulsos de casa, agredidos nas ruas, alvo de olhares discriminatórios e constantemente desrespeitados no direito ao nome social. Cabe perguntarmos: por que as juventudes não conseguem vislumbrar o futuro como um lugar bom para elas?
5. “Tenho sede” (Jo 19, 28)
Não foi a primeira vez que Jesus pediu água. No encontro com a Samaritana (cf. Jo 4, 5-42), ele também diz: “Dá-me de beber”. Entre os jovens pobres e periféricos, o discurso do empreendedorismo – do “trabalhe enquanto eles dormem” –, tem levado essa parcela significativa da população brasileira a jornadas exaustivas de trabalho. Jovens que trabalham a semana toda e, nos finais de semana, conseguem apenas limpar a casa e descansar em função da próxima semana de trabalho que virá. Ou ainda, vendem roupas ou fazem freelancers nos finais de semana para compor a renda deles e da família. Jovens que correm risco de vida entre os corredores de carros, em cima de moto e bicicleta, utilizando toda a sua força e materiais, como entregadores de aplicativos. São criticados por fazerem greves reivindicando o mínimo: um lugar para descansar, acesso à internet, tomadas para carregar o celular, micro-ondas para esquentar sua marmita. Jovens que trabalham exaustivamente e, assim como Jesus, só estão (ainda) lutando por água para beber.
6. “Tudo está consumado” (Jo 19, 30)
Jesus, extenuado, agonizante, assume o cumprimento de sua missão. “Consumado” tem a mesma raiz de “consumido”. E o consumo atravessa profundamente as realidades juvenis. Explorada pelo consumo compulsivo, a juventude tem sofrido com o endividamento precoce. Nas redes sociais, uma enxurrada de influenciadores inculca modos de vida desejáveis, “ideais”. Na educação, o modelo ultraconservador das escolas cívico-militares tem sido implantado em vários estados brasileiros. A privatização das escolas públicas também tem despontado nos intentos ultraneoliberais. São formas de lucro para empresários e de controle social, às custas dos mais pobres. Gastos exorbitantes dos recursos públicos são canalizados para segurança e lucro privado, enquanto jovens são moídos pela engrenagem do capital. Os capitalistas implantaram seu ideário de que o carnicento capital é o auge da sociabilidade. Para eles, tudo está consumado: a maquinaria que mói gente tem funcionado muito bem.
7. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46)
Pregado na cruz, Jesus profere sua última palavra que ressoa fortemente no silêncio comovido da assembleia durante o Anúncio da Paixão de Cristo. Esse silêncio também nos comove e revolta diante do sofrimento juvenil? Essa memória permanece viva nas celebrações, mas também se mantém drasticamente atualizada a cada jovem abandonado, por quem nada fizemos. (cf. Mt 25,35-45). Cresce entre os jovens a preocupação com a crise climática. As consequências do racismo ambiental estão presentes: no preço dos alimentos, nos desastres socioambientais, nas alterações da relação dos povos originários e comunidades tradicionais com os rios, as matas e os animais. O que restará às futuras gerações? Aos adultos, o questionamento: que futuro entregarão aos jovens? Permanecerão no negacionismo climático? Como diz o provérbio africano: “Não herdamos o mundo dos nossos antepassados, tomamo-lo emprestado de nossas crianças.”
Referências
AQUINO JÚNIOR, Francisco. Catolicismo Popular e Libertação. In: Revista de Cultura Teológica. Ano 31. n. 105, maio-agosto de 2023. p. 165-185. PUC/SP. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/61443/43117. Acesso: 15 abril 2025.
ALTEMEYER JUNIOR, Fernando. Devoção popular: as festas juninas e a pastoral. In: Revista Vida Pastoral. Ano 59. n. 321, maio-junho de 2018. p. 21-28. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/wp-content/uploads/2018/04/VP_321_web_Final.pdf. Acesso: 16 abril 2025.

