Proteger o mundo é defender os territórios e os direitos dos povos indígenas

Por Robson da Silva Oliveira*

A defesa dos povos indígenas é, hoje, uma das frentes mais urgentes e estratégicas para garantir a preservação da vida no planeta. Em meio à crise ambiental global, marcada pelo avanço da devastação das florestas, pelo colapso climático e pela perda da biodiversidade, os povos originários continuam a ser os principais guardiões dos territórios preservados, dos conhecimentos ancestrais e das formas sustentáveis de habitar o mundo. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), grande parte da biodiversidade restante no planeta está localizada em terras indígenas. No Brasil, os dados do MapBiomas de 2023 mostram que os territórios indígenas são os que menos sofrem com o desmatamento, mesmo sob intensa pressão de grileiros, garimpeiros e grandes projetos de infraestrutura.

A centralidade da terra para os povos indígenas não é apenas ecológica, mas existencial. Para os povos tradicionais, na sua relação com o espaço vivido, o ser humano não é mais do que a natureza, não existe o pressuposto de superioridade de um em relação ao outro, e a natureza pode ser confortável àquele que a conhece. O que existe é uma profunda convivência, um parentesco e um respeito entre sociedade e natureza, que acontece para que o mesmo homem continue a existir, ali mesmo, no lugar e na pessoa de seus filhos e descendentes. E acrescenta que a relação do indígena com seu espaço é a mesma que mantém com seu próprio corpo (BARBOSA, 2000, p. 196). Sem território, não há povo, não há cultura, não há existência possível.

Essa perspectiva está presente também na obra de Ailton Krenak, pensador, líder indígena e ambientalista do povo Krenak, que tem chamado atenção para a falência do projeto civilizatório ocidental. Em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak argumenta que a modernidade separou o humano da natureza, instaurando uma lógica de dominação e exploração que nos leva ao colapso. Ele propõe uma suspensão dessa narrativa linear do “progresso” e nos convida a reaprender com os povos que nunca romperam com a terra (KRENAK, 2019). Para ele, os povos indígenas não se consideram fora da natureza — eles são natureza. A ideia de que o planeta é uma “coisa” a ser usada é o que sustenta o extrativismo desenfreado.

Davi Kopenawa, xamã e intelectual do povo Yanomami, em seu monumental livro A Queda do Céu, denuncia a destruição provocada pelo garimpo ilegal em terras indígenas, que contamina os rios com mercúrio, devasta florestas e mata os espíritos protetores da floresta — os xapiri. Para Kopenawa, o avanço dos brancos sobre a floresta não é apenas uma agressão física, mas também espiritual. É uma tentativa de silenciar os saberes ancestrais, de apagar as vozes que sustentam o equilíbrio entre os mundos (ALBERT; KOPENAWA, 2010). Essa luta também está presente na voz poética e combativa de Eliane Potiguara, escritora, ativista e educadora do povo Potiguara. Em suas obras, como Metade cara, metade máscara, ela denuncia o racismo estrutural, o apagamento histórico e a negação dos direitos indígenas. Potiguara afirma que os povos indígenas foram historicamente silenciados, mas continuam vivos, resistindo, recriando suas formas de viver e de pensar o mundo. Para ela, a luta por direitos é também uma luta por memória e por justiça para as mulheres:

O meio ambiente, o território, o planeta Terra estão intrinsecamente ligados ao ventre da mulher indígena — a mulher selvagem, nos dois sentidos (primeira cidadã do mundo e intuitiva) — e, por isso, não haverá defesa ambiental se não se destacar a influência e o conhecimento milenar da mulher, do ser que habita esse meio ambiente. Isso é um testemunho para a sociedade e para a formação da cidadania brasileira. Se a natureza deve ser respeitada em seu ciclo de existência e valorizadas as fases da lua, da maré, do sol, da colheita, as mulheres indígenas devem ter o mesmo tratamento (POTIGUARA, 2004, p. 56).

A defesa dos territórios passa também pelo fortalecimento de uma epistemologia indígena, que se opõe à lógica colonial de conhecimento. Daniel Munduruku, do povo Munduruku, é um dos principais pensadores sobre a descolonização do saber. Em sua obra, ele propõe uma pedagogia da ancestralidade, na qual o saber não está dissociado da experiência, do território e da oralidade. Ele afirma que o território da mente também precisa ser descolonizado, pois o colonialismo não nos arrancou apenas a terra, mas também o direito de pensar com nossas próprias raízes.

Outras vozes vêm sendo a força dessa resistência. Célia Xakriabá, do povo Xakriabá, tem articulado a educação indígena, o feminismo e a justiça climática como dimensões inseparáveis. Em suas falas, ela destaca que o território é o primeiro livro dos povos indígenas, e que não há como defender o meio ambiente sem defender os corpos, os saberes e os direitos desses povos. Juliana Batista, do povo Kariri-Sapuyá, aponta como a violência contra as mulheres indígenas se relaciona com a violação dos territórios, e que a proteção da terra é também uma forma de cuidado com o corpo e com a comunidade.

Txai Suruí, jovem liderança do povo Paiter Suruí, tem levado essa pauta a fóruns internacionais, como a COP26, onde afirmou que “nós sempre protegemos a floresta. Agora, o mundo precisa nos ouvir”. Dayara Tukano, artista e ativista do povo Tukano, reforça que a luta indígena é, acima de tudo, uma luta pela vida: “não estamos lutando apenas por nossas terras. Estamos lutando para que todos continuem a respirar”.

Joênia Wapichana, a primeira mulher indígena a ser eleita Deputada Federal, reitera dizendo que a luta pelos direitos dos povos originários não é somente dos indígenas, mas sim de toda a nação. “Quando defendemos os direitos indígenas, estamos defendendo nossa própria história enquanto sociedade, defendemos as riquezas naturais contidas nessas terras e nosso meio ambiente e, por consequência, nosso país e o mundo. Está tudo interligado. A responsabilidade é de todos. Nós fazemos parte desse processo de luta. Agora, mais do que nunca, precisamos combater a negação de acordos internacionais que foram feitos e que não estão sendo respeitados, dos quais o Brasil é signatário, em defesa dos direitos dos povos indígenas. Resistir sempre, desistir jamais.”

Apesar da importância incontestável desses territórios para a preservação ambiental e para a vida no planeta, os povos indígenas enfrentam graves ameaças. Segundo o Censo de 2022, o Brasil abriga mais de 1,6 milhão de indígenas, de mais de 300 etnias. No entanto, apenas cerca de 500 das 724 terras indígenas identificadas possuem algum tipo de reconhecimento oficial. Temos que lembrar que os povos indígenas estão em permanente processo de resistência, mas a resistência não é cristalizada, ela é cotidiana e, como nos diz Scott (2004), ela se apresenta de várias formas, não necessariamente por meio de lutas, confrontos diretos, rebeliões ou revoltas, mas naquilo em que consiste e persiste o fundamento da existência. A resistência se torna inseparável da existência: é ocupar, cuidar, retomar, ensinar nos territórios, nas aldeias e cidades, nas redes, nas estruturas políticas, escolas, em todos os lugares.

Reconhecer os povos indígenas como povos e nações é um passo fundamental para a superação das estruturas coloniais que ainda marcam profundamente o Estado e a sociedade brasileira: trata-se de reconhecer a autonomia, os sistemas próprios de organização social, política, espiritual e territorial desses povos, que existiam muito antes da constituição do Estado-nação brasileiro. É também reconhecer que existem muitas formas legítimas de habitar o Brasil e de imaginar outros mundos possíveis. Ainda que com governos progressistas, não reconhecemos os povos indígenas como POVO, como NAÇÃO, pois isso compromete — e obriga a reconhecer — que o caminho que estamos trilhando é o da destruição da nossa casa comum, ou melhor, a destruição de nós mesmos enquanto seres viventes neste mundo.

Seus territórios são territórios de biodiversidade, mas também de saberes, de espiritualidade e de resistência. Seus modos de vida ensinam que tudo está totalmente interligado. Diante da crise planetária, não há saída tecnocrática que possa substituir o que os povos indígenas já sabem há séculos: que a terra é viva, e que cuidar dela é cuidar de todos nós.

A proteção da nossa Casa Comum passa pela proteção, pela garantia de direitos e territórios e pelo reconhecimento dos povos indígenas.

BANIWA, Gersem. Povos indígenas e a construção da interculturalidade. Brasília: MEC, 2019.

BARBOSA, Carla Gonçalves Antunha. Terra, Território e Recursos Naturais: cultura, sociedade e política para os povos autóctones. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. Indigenous Peoples. Disponível em: https://www.fao.org/indigenous-peoples. Acesso em: abr. 2025.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022: População indígena. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: abr. 2025.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MAPBIOMAS. Relatório Anual de Desmatamento. 2023. Disponível em: https://mapbiomas.org. Acesso em: abr. 2025.

MÍDIA ÍNDIA. Coletivo de comunicação indígena. Disponível em: https://www.midiaindia.com.

MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena. Petrópolis: Vozes, 2009.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Brasília: Thesaurus, 2004.

SCOTT, James C. Los Dominados e el Arte de la Resistência: discursos ocultos. 1ª reimp. Trad. Jorge Aguillar Mora. México, 2004.

SURUÍ, Txai. Discurso na COP26, Glasgow, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5yx_wkXtqF0.

TUKANO, Dayara. Declarações públicas em mídias sociais e coletivas. Acesso em: abr. 2025.XAKRIABÁ, Célia. Entrevistas e palestras disponíveis em: https://www.youtube.com/c/CeliaXakriabaOficial. Acesso em: abr. 2025.

* Robson da Silva Oliveira é Historiador e Mestre Planejamento Urbano e Regional (UNIVAP), Especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo (FAJE) e Colaborador da Rede Caminhos de Esperança e do Centro de Juventude Cajueiro, estuda e pesquisa sobre os povos indígenas, em especial no contexto urbano.

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